Livros, contos e filmes contam histórias de amor. Não apenas do clássico amor entre um homem e uma mulher, mas também do amor fraterno, do amor paternal e maternal, do amor filial, ou mesmo do amor de um cão por seu dono. Alguns amores são difíceis de classificar. Eu explico:

Havia nesta terra um homem chamado Aprígio Furtado de Oliveira Primo, mas ninguém o conhecia pelo nome. Todos, desde que ele era pequeno, habituaram-se a chamá-lo de “Camarada”. E, durante seus quase cem anos de vida, a maioria das pessoas que conviveram com ele nem ao menos sabia seu nome verdadeiro, pois sempre o conheceram e o chamaram de Camarada.

E por que alguém ganha, desde criança, o apelido de Camarada? Simples, porque ele sempre foi exatamente isso, amigo de todos e sempre disposto a ajudar, até mesmo desconhecidos.

Quando nasci, havia uma geração entre eu e ele. Ele é meu avô, pai de minha mãe. E quando fui batizado, ele tornou-se meu padrinho. Já na adolescência, admirando a Maçonaria por saber que ele era maçom, ingressei na Ordem DeMolay e ele tornou-se meu tio. E, anos depois, quando fui iniciado na Maçonaria, lá estava ele, chorando de alegria por eu ter me tornado seu irmão.

Então como eu poderia classificar esse amor que sinto? Amor de neto? De afilhado? De sobrinho? De irmão? Gosto de pensar que de todos e muito mais. Pois, além de tudo isso, o Camarada era meu amigo. Daquele amigo que é companheiro de estrada, com quem tive a oportunidade de rodar o interior de nossas Minas Gerais tantas vezes. Daquele amigo com quem desabafamos, pedimos conselhos, contamos segredos.

O Camarada, apesar de pouco estudado, era um leitor voraz. Lia até jornal velho. E era um verdadeiro apaixonado pela Maçonaria. Foi iniciado na Loja “Luz e Humanidade”, do GOB-MG, em Patrocínio. Ainda Aprendiz, mudou-se com a família para Unaí, cidade então muito nova e desprovida de lojas. Ele ia toda semana de jipe, em estrada de terra, para Paracatu, a cem quilômetros de distância, para frequentar as reuniões da Loja “Nova Luz Paracatuense”, também do GOB-MG. As duas lojas então trocaram correspondências e combinaram que ele receberia as instruções, apresentaria trabalhos e passaria pela sabatina em Paracatu e, quando aquela loja informasse à loja de Patrocínio que ele estava pronto, esta marcaria seu aumento de salário. E assim foi, até que o Camarada tornou-se Mestre.

Já Mestre Maçom, o Irmão Camarada reuniu-se com outros irmãos que viviam em Unaí e fundaram a primeira loja daquela cidade, “Mestres do Rio Preto”, no GOB-MG, tendo aquele grupo de irmãos escolhido o Camarada como seu primeiro Venerável Mestre. Alguns anos depois, quando Athos Vieira de Andrade, mineiro, “ganhou mas não levou” a eleição para Grão-Mestre Geral do GOB, culminando no surgimento da COMAB, muitas lojas de Minas decidiram por seguir Athos, entre elas a “Mestres do Rio Preto”, de Unaí.

Posteriormente a isso, o Irmão Camarada mudou-se para Uruana de Minas, ajudando a fundar a Loja “Nova Luz Bonfinopolitana”, GOMG-COMAB, em Bonfinópolis de Minas, a oitenta quilômetros de Uruana. Voltou assim a enfrentar semanalmente uma estrada de terra por conta de Maçonaria. Durante sua permanência em Uruana de Minas, deu assistência a um senhor, de passagem pelas proximidades. Esse senhor era um irmão, Celso Sérgio Ferreira, então Grão-Mestre da GLMMG. Dali nasceu uma grande amizade.

E quis o GADU que o Camarada retornasse a viver em Unaí depois de alguns anos. Foi então que aquele seu amigo, Celso Sérgio Ferreira, pediu para que ele auxiliasse outros irmãos que tinham por missão fundar uma nova loja em Unaí. Assim nasceu a “Acácia Unaiense”, da GLMMG. Lembro-me que, na ocasião da instalação da Loja, eu tinha apenas 10 anos e o “tio” Celso me sentou no colo e me perguntou se eu era bom em geografia. Ingênuo, respondi que sim. Então ele me fez dizer o nome de cada estado brasileiro por região geográfica. Quando chegou no Nordeste, a coisa complicou… e acabei esquecendo-me de Sergipe! O tio Celso então me disse que a próxima vez que voltasse a Unaí, me cobraria as capitais! Com receio de errar novamente, tratei de dar mais atenção e valor às aulas de geografia.

O tio Celso era, além de Grão-Mestre, Oficial Executivo da Ordem DeMolay para Minas Gerais. Por meio dele, o Irmão Camarada teve conhecimento sobre o que é a Ordem DeMolay. Ele passou anos defendendo a ideia de fundação de um Capítulo DeMolay em Unaí, encontrando enorme resistência. Esse projeto somente foi possível quando o filho de um maçom, foi estudar em Uberlândia e lá ingressou na Ordem. Assim, passou-se a ter mais maçons a favor do projeto, até que o mesmo tornou-se realidade. E lá estava o tio Celso com o meu vovô Camarada em minha iniciação na Ordem DeMolay. Meus dois padrinhos.

O pouco que sei da vida na roça, entre tirar leite, tocar berrante e gostar de uma boa moda de viola, aprendi com o Camarada. Mas seu exemplo ensinou-me muito mais, e o desejo de manter-me digno de ser seu neto, afilhado, sobrinho, irmão e amigo, manteve-me reto.

Quando fui iniciado na Maçonaria, na “Alvorada”, da GLMDF, em Brasília, ele não se contentou apenas em se fazer presente. Ele filiou-se à Loja e vinha de Unaí, de ônibus ou de carona, por 170 km, com certa frequência. Pelo menos, as estradas já não eram mais de terra. E ele ainda ajudou-nos a fundar a Loja “Bandeirantes” e a Loja “Flor de Lótus”.

Dediquei livros maçônicos que escrevi a ele, mesmo depois que ele queixou-se de que, infelizmente, não tinha mais visão, memória e raciocínio para ler. Isso porque as dedicatórias nunca foram para agradá-lo, mas para homenagear um maçom que enfrentou, por décadas, estradas de terra de madrugada, voltando para casa após incontáveis reuniões maçônicas em outros Orientes. Um maçom que nasceu no GOB, cresceu na COMAB e envelheceu na CMSB, sem nunca fazer qualquer distinção de irmão por rito ou potência. Um maçom que se dedicou à Ordem DeMolay e serviu de conselheiro e exemplo para dezenas de jovens, muitos dos quais passaram a também chamá-lo de “vovô Camarada” por compartilharem desse sentimento. E o maçom que ensinou-me a amar a Maçonaria por vê-lo, durante todos os dias da minha vida, viver a Maçonaria e seus ensinamentos 24 horas por dia.

Ele nos deixou no dia 19 de maio deste ano de 2020, aos 93 anos de idade, quando seu espírito prevaleceu sobre a matéria.

Obrigado, vovô Camarada, por tudo. Nada que eu fizer pela Ordem chegará perto do que o senhor fez por mim e por ela.